Ensaio sobre carreira

Introdução

Sempre tive uma certa resistência em tentar escrever algo aqui sobre carreira. Acho que minha dificuldade vem da minha concepção de liderança por exemplo. Acho que seria muito ruim escrever sobre, sei lá, sucesso ou tentar dar conselhos sobre por qual caminho seguir sem estar necessariamente seguro do próprio sucesso ou de qual caminho seguir.

Mesmo assim, resolvi compartilhar aqui um pouco da minha experiência com o objetivo de ajudar companheiros de profissão a encontrarem também seu caminho ou talvez evitar algumas frustrações e escapar de algumas armadilhas.

Se vc tiver paciência pra chegar até o final do post, peço a gentileza de me mandar suas impressões, por e-mail, twitter, comentário no blog. O que achar válido, mas já aviso que o post vai ser longo…. 😉

Motivação

Apesar de longo, e até um pouco antigo, esse vídeo do Dan Pink merece ser visto até o final. Ele mostra alguns estudos que mostram como o modelo de recompensa tradicional (oferecer dinheiro ou prêmio em cumprimento de uma meta) funciona muito bem para trabalhos repetitivos (algorítmicos) e como ele é ineficiente para trabalhos criativos ou heurísticos.

Vídeo: Dan Pink e a surpreendente ciência da motivação

A primeira vez que eu vi esse negócio, caiu que nem um meteoro na minha cabeça. Agora estou lendo o livro “Drive – The Surprising Thuth About What Motivates Us”. Impressionante como esse livro vem sendo citado por muitos caras de software e em eventos de agilidade. Não é à toa.

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No “Drive”, o autor traz a idéia que no século XX existia uma grande demanda por trabalho repetitivo. Não existia tanto desenvolvimento, tantas ferramentas e ainda era muito necessário o trabalho humano repetitivo e braçal. E rapidamente, o homem inventou um “sistema operacional” para este modelo. O modelo de recompensa, geralmente financeira para o batimento de uma meta.

Com o progresso, cada vez mais o trabalho criativo é necessário. Para o crescimento das empresas, não mais é necessário somente trabalhar muito, mas pensar em soluções, desenvolver novas formas de fazer negócios, criar novos produtos, e como mostrado no vídeo acima e no livro, o modelo de recompensa tradicional não funciona para estes casos.

O ponto é que, como bem exemplificado, os negócios ainda não fazem o que a ciência descobriu.

As diferentes tribos de desenvolvedores

É curioso como uma mesma profissão pode acomodar perfis completamente diferentes de profissionais. De um lado temos pessoas extremamente comprometidas, preocupadas em tornar o trabalho do desenvolvedor mais profissional, estudando pilhas de livros, cruzando o país várias vezes ao ano para participar de eventos, desenvolvendo projetos open source, participando de dojos e tantas outras coisas (grupo A), e do outro profissionais que trabalham com tecnologias defasadas, cada vez mais repetindo o mesmo estilo de programação, sem se preocupar em aprender nenhuma tecnologia nova ou conceito novo (grupo B).

Minha conjectura, após conhecer a teoria do Dan Pink, é que isso é facilmente explicado pelos “sistemas operacionais” que ele descreve.

Faz muito sentido para o desenvolvedor do grupo B, motivado por recompensa funcionar da forma que ele funciona. Quanto pior a qualidade do código que ele escrever, mais problema o sistema vai dar. E obviamente mais vão precisar dele para corrigir. Quanto mais rápido ele codificar e mais rápido entregar o projeto desde que passe nos subjetivos critérios de aceitação, melhor pra ele. E em muitas empresas ele será recompensado por isso! Em resumo, ele entrega com uma qualidade ruim, no prazo, ganha bônus e ainda garante o emprego para o resto da vida.

Na outra extremidade faz muito sentido para o desenvolvedor do grupo A, motivado por propósitos se inconformar com a postura do desenvolvedor B. Ele é motivado por ver o software funcionando, ver a empresa funcionando, ver a sociedade, o companheiro de equipe tendo algum benefício com isso. Para ele, a recompensa é o próprio resultado do trabalho. Pode ser que lendo, você não entenda que alguém pense assim, mas se ainda não viu, por favor, veja o vídeo acima.

De fato, já ouvi várias vezes a resposta “porque eu preciso do dinheiro” para a pergunta “qual sua motivação?”. Isso pra mim de certa forma me dá mais segurança na minha conjectura.

A pílula vermelha ou a pílula azul

É duro parafrasear o Matrix, mas você vai ter que escolher uma delas e cada escolha é exclusiva. O importante aqui é saber o preço de cada escolha. Você pode encarar a realidade, dura e pagar o preço por sua escolha ou viver pulando de empresa em empresa em busca do Nirvana.

Grupo A

Se sua cabeça funciona como o grupo A, você tem duas escolhas. Buscar empresas que trabalhem com desenvolvimento de um produto, startups com modelos de negócio fortemente apoiadas em TI ou empresas que tenham TI dentro de casa. Geralmente estas empresas, por sofrerem diretamente o prejuízo de má qualidade de software, tendem a ser mais sensíveis a este discurso. Como nem tudo são rosas, saiba que essas empresas geralmente são menores, pagarão salários menores e terão maior risco de passarem apertos em cenários de instabilidade econômica. Busque empresas que trabalhem com metodologia ágil e fuja do modelo de recompensa orientado a metas por entrega no prazo. Esse modelo gerará sempre o conflito qualidade x prazo.

Se você realmente for um cara cabeça-dura e insistir em não querer correr o risco citado no parágrafo anterior, ganhar grandes salários e trabalhar em empresas grandes, você pode procurar grandes instituições financeiras (fortemente orientadas a metas e com bônus) e prestadoras de serviço de software (que pagarão bem pela sua capacidade de recuperar projetos caóticos ao custo de sua saúde). Acostume-se a ser chamado de: perfeccionista, preciosista e profissional de baixa resiliência. Tome cuidado pois durante os vários conflitos de entrega de qualidade x entrega no prazo você poderá ser visto quem está jogando contra o time ou mesmo criando conflitos na equipe. Não ache que pular fora desta discussão o isentará das longas noites e finais de semana fazendo o sistema funcionar na força bruta ao custo de sua saúde.

Cuidado com a armadilha das pequenas empresas que promovem ambientes descontraídos, ausência de hierarquia, videogames no escritório, etc. Apesar de eu acreditar que existem empresas assim acredito também que existem muitas que possuem somente o discurso. Apesar de não concordar com a abordagem, compreendo a reação de alguns desenvolvedores dando respostas extremamente ríspidas a este discurso em listas de discussão.

Outra armadilha é a empresa de serviço escondida numa empresa de produto. Geralmente é uma empresa, que tem um produto em casa, mas que não possui nenhum tipo de gestão técnica sobre o produto. Vende uma coisa diferente para cada cliente diferente sendo que cada customização é um projeto (com recompensa por entrega no prazo).

Grupo B

Se sua cabeça se identifica mais com o grupo B, faça exatamente o inverso do grupo anterior. Procure empresas com modelo de recompensa baseado em metas por entrega no prazo e fuja de empresas inovadoras. Busque aprender linguagens extremamente defasadas que as pessoas do grupo A não tem estômago para trabalhar, geralmente linguagens procedurais como VB ou COBOL. Se você tiver paciência para aprender algo novo, motivado pelos altos salários que esse aprendizado lhe trará, busque linguagens proprietárias e raras como ABAP (do SAP) ou outros ERP’s. Paga-se muito caro por este nível de especialização e o pessoal do grupo A não vai se interessar muito por aprender essas linguagens/tecnologias pela própria característica dela. O preço da sua escolha será a falta de contato com coisas novas, viver corrigindo bugs em sistemas extremamente defasados e complexos, naquele estilo que você corrige um bug e ele reaparece em outro lugar e você fica tentando pegar o cachorro perseguindo o rabo dele.

Você poderá correr algum risco de perder o emprego quando alguns destes legados forem substituídos. E não imagine que você será poupado dos longos finais de semana e madrugadas de correções de bugs.

Gestor ou especialista?

Essa decisão é tão difícil quanto a anterior, e provavelmente o seu modelo de motivação também o ajudará na sua decisão.

Grupo A

Com o grande crescimento das metodologias ágeis, é bem possível que com o tempo Scrum Masters sejam visualizados como gestores nas empresas e esta seja uma boa opção pra quem vem de um background técnico, mas até lá, geralmente que quando se escolhe por uma carreira de gestão, sua distância do código vai aumenta. Em grandes empresas de tecnologia internacionais, é normal encontrarmos desenvolvedores com títulos de “Principal” (diretor) e que ainda atuam diretamente com mão no código, mas não é uma realidade para empresas atuando no mercado brasileiro.

Provavelmente se sua cabeça pensa como o grupo A, você vai viver um eterno conflito. Quando se aproximar da gestão, vai se distanciar do código e se frustrar, se sentir estagnado, como se não estivesse contribuindo com algo produtivo e distante do seu propósito. Pode ser que até se sinta um pouco enganador, liderando pessoas sem ser uma referência em conhecimento técnico para ela. Quando se aproximar do código, vai cada vez mais se visualizar distante da gestão e sentir que sua carreira (no sentido financeiro) está estagnada.

Caso escolha pelo caminho da gestão, seu raciocínio lógico e seu conhecimento técnico provavelmente irão lhe sabotar em situações de negociações em que fatores humanos e políticos predominem. O impulso para resolver diretamente os problemas do dia a dia pode se tornar uma dificuldade no desafio de todo grande gestor que é ajudar sua equipe a crescer. A vantagem de enfrentar tudo isso é ter uma possibilidade clara de crescimento na carreira, assim como a imediata desvantagem que é a diminuição de oportunidades. Quanto mais alto o cargo e o salário, menor a quantidade de oportunidades.

Por outro lado, se escolher a carreira de especialista estará mais próximo do código. Existem empresas que prometem uma carreira em Y, de forma que o especialista teria as mesmas oportunidades de um gestor. Recomendo procurar alguém que trabalha numa destas empresas para dar sua opinião se realmente isso funciona na prática, ou seja, se um especialista de fato tem poder de decisão (ao menos técnica) nas empresas, se a faixa salarial é a mesma, etc.

O preço dessa escolha é o risco de ser gerenciado por um gestor sem conhecimento técnico e ter que pagar o preço por decisões por vezes equivocadas no seu ponto de vista, ter um limite salarial e de crescimento de carreira que provavelmente chegará muito rápido, além de poder eventualmente sentir uma espécie de tom de deboche quando ouvir comentários do tipo “você poderia estar longe na carreira, mas preferiu ficar programando”. Por outro lado, existem vantagens como a facilidade de recolocação e a maior satisfação e alinhamento com a sua natureza, em outras palavras, fazer o que gosta.

Grupo B

Se escolheu ser um gestor, sua motivação pela recompensa direta (salário e bônus) será uma forte aliada para superar todos os desafios da gestão. Você sofrerá a mesma dificuldade de todo profissional técnico que é aprender a lidar com pessoas, aprender a desenvolver pessoas, habilidades de negociação, etc. No caso da gestão de uma equipe técnica, você poderá ter também bastante dificuldade em conseguir o respeito da equipe técnica devido ao histórico das tecnológias e métodos que praticou enquanto analista.

No caminho de especialista, pode ser difícil conseguir o skill necessário para virar um especialista pois enquanto as pessoas do Grupo A são auto-motivadas e buscam conhecimento por conta própria, você do grupo B precisará de um estímulo externo (Ex.: uma clara oportunidade de promoção do tipo “aprenda a tecnologia A e será promovido”) para conseguir a motivação necessária a adquirir um novo skill.

A mudança no cenário

Outro ponto a ser considerado na tomada de decisão é que cada vez mais inovação é um assunto na agenda das empresas. Muitas empresas estão precisando da criatividade e da inovação para melhorarem seus resultados ou mesmo para sobreviver. Se os negócios começarem a perceber que o caminho sugerido pela ciência faz sentido, cada vez mais pessoas do grupo A serão procuradas.

Será que essa mudança acontecerá? Ou seria a pergunta mais apropriada: quanto tempo levará para essa mudança acontecer?

Conclusão

Não existe almoço grátis. Toda escolha é exclusiva e quando lidamos com nossa carreira é importante conhecermos a nossa natureza e buscarmos aquilo que está mais alinhado com ela. A melhor forma de evitar as frustrações e não cair em armadilhas é desenvolvendo o auto-conhecimento e sabendo claramente qual a escolha que está sendo feita e o preço pago por ela.

5 thoughts on “Ensaio sobre carreira

  1. Olá, Eric.
    Continue falando sobre carreira. É algo importante e que as pessoas, ao meu ver, querem (e precisam) ler.
    Não me imagino no grupo B e estamos indo aqui na empresa pelo caminho de termos todos com a mentalidade e atitude do grupo A.
    []s e parabéns pelo post!

  2. Olá Eric! Muito bom o seu post, gostei da leitura. Achei bastante interessante a palestra do autor do livro na TED (Daniel Pink). Acho que todos os gestores, que na minha opinião o principal e mais difícil papel é motivar as pessoas… deveriam investir o tempo deles buscando formas de pensar diferente, começando lendo este livro.
    A nossa motivação como profissional é uma variável que o gestor é responsável por trabalhar (e concordo que não é fácil, isso realmente leva a crer que a máxima “lideres são naturalmente seguidos (admirados) e não temidos ” cada vez mais têm total fundamento.
    Abraços e Parabéns! Ualter

  3. Ótimo post. Alguns comentários:

    1. Motivação: o livro Drive realmente é muito bom. É a questão entre motivação intrínseca, que vem da própria pessoa, e extrínseca, causada por fatores externos. A verdadeira motivação é a intrínseca, ou seja, aquela que vem da própria pessoa. Ninguém consegue motivar outra pessoa. Fatores externos (sejam de incentivo ou de punição) podem até conseguir o comportamento desejado, mas são restritos a certos tipos de atividades mecânicas e repetitivas, como você apontou. Além disso, não são sustentáveis, pois a pessoa passa a exigir cada vez mais recompensas para se sentir “motivada”, ou seja, só trabalha mediante um prêmio claro, criando um círculo vicioso. Podemos dizer que a pessoa se torna “mercenária”. Para piorar, foram feitos estudos em Psicologia que mostraram que quando uma atividade passa a ter uma recompensa, ela é executada com menos qualidade e entusiasmo. É como se uma recompensa “estragasse” a motivação intrínseca que as pessoas possuem para realizar uma determinada atividade.

    2. Metas, bônus e avalição de performance: além dos problemas citados acima, em uma política de metas, muitas pessoas acabam fazendo o que é necessário para atingir a meta e, consequentemente, obter o bônus, independentemente da meta ser boa para a empresa ou não. Ou seja, a pessoa é incentivada a bater a meta, mesmo que ela já não faça mais sentido ou cause danos. Sobre esse assunto, sugiro um ótimo livro, chamado “Abolishing Performance Appraisals: Why They Backfire and What to Do Instead” (http://www.amazon.com/Abolishing-Performance-Appraisals-Backfire-Instead/dp/1576752003)

    3. Sobre ambientes descontraídos, videogames no escritório, etc, outro dia li um post sobre esse assunto, com o qual concordo em vários pontos: “Cilada: a fábrica de doces e o desenvolvedor infantil” http://www.itexto.net/devkico/?p=1460

    4. Inovação: é a palavra da moda. Toda empresa diz que é inovadora, mas são pouquíssimas que realmente o são. O problema que vejo é que muitas empresas tem Inovação no discurso, para passar uma imagem de moderna, mas não ocorre na prática. Não é porque a empresa tem contas no Facebook e Twitter que é inovadora. Não é porque a empresa tem um app para iPad que é inovadora. Nem porque você está trabalhando com as tecnologias mais recentes que você é inovador. A maioria nem sabe o que significa inovação. O Elemar Jr tem uma boa defnição: “Inovação é tudo aquilo que produz dinheiro novo”. Algumas empresas parecem que querem mudar para que tudo continue como antes. O exemplo clássico são as empresas que têm conta em tudo que é rede social mas não libera o acesso para os próprios funcionários. Para uma empresa estabelecida, é muito complicado ser realmente inovadora. Há muitos interesses em jogo e ninguém quer sair perdendo. Além disso, seus processos de negócio, normalmente, são de uma época industrial, de produção em massa, não preparados para uma economia criativa e mudar isso é muito, muito difícil. Por isso muitas empresas destacam uma equipe ou até mesmo criam um spin off para que a inovação possa nascer e amadurecer com liberdade, sem interferência da “matriz”. Empresas novas tem vantagem nesse ponto, já que tem menos a perder, além de já nascerem sobre outra perspectiva social e econômica, mas correm o risco de perder essa característica quando crescem e passa a ter medo de perder o que conquistaram.

  4. Grande post Eric. Vejo um terceiro grupo, o dos empreendedores. Não necessariamente você precisa criar uma nova empresa, é possível empreender na própria empresa. Eu diria que este é o grupo seria uma intersecção de A e B.

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